quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Queda

Tu te abaterás sobre mim querendo domar-me mas eu te resistirei
Porque a minha natureza é mais poderosa do que a tua.
Ao meu abraço procurarás condensar-te em força - eu te olharei apenas
Mansamente alisarei teu dorso frio e ao meu desejo hás de moldar-te
E ao sol te abrirás toda para as núpcias sagradas.
Hás de ser mulher para o homem
E em grandes brados espalharás amor ao céu azul e ao ouro das matas.
Eu ficarei de braços erguidos para os teus seios de pedra
E escorrerá como um arrepio pelo teu corpo líquido um beijo para os meus olhos
Na poeira de luz que se levantará como incenso em ondas
Descerás teus cabelos cheios para ungir-me os pés.

No instante as libélulas voarão paradas e o canto dos pássaros vibrará suspenso
E todas as árvores tomarão forma de corpos em aleluia.
Depois eu partirei como um animal de beleza, pelas montanhas
E teu pranto de saudade estará nos meus ouvidos em todas as caminhadas.

Vinicius de Moraes

Blowin in the wind / Soprada ao vento

Quantas estradas precisará um homem andar
Antes que possam chamá-lo de um homem?
Quantos mares precisará uma pomba branca sobrevoar
Antes que ela possa dormir na areia?
Sim e quantas vezes precisará balas de canhão voar
Até serem para sempre banidas?

A resposta, meu amigo, está soprada no vento
A resposta está soprada no vento

Sim e quantos anos pode existir uma montanha
Antes que ela seja dissolvida pelo mar?
Sim e quantos anos podem algumas pessoas existir
Até que sejam permitidas a serem livres?
Sim e quantas vezes pode um homem virar sua cabeça
E fingir que ele simplesmente não vê?

A resposta, meu amigo, está soprada no vento
A resposta está soprada no vento

Sim e quantas vezes precisará um homem olhar para cima
Antes que ele possa ver o céu?
Sim e quantas orelhas precisará ter um homem
Antes que ele possa ouvir as pessoas chorar?
Sim e quantas mortes ele causará até ele saber
Que muitas pessoas morreram?

A resposta, meu amigo, está soprada no vento
A resposta está soprada no vento

Bob Dylan

O ronron do gatinho

O gato é uma maquininha
que a natureza inventou;
tem pêlo, bigode, unhas
e dentro tem um motor.
Mas um motor diferente
desses que tem nos bonecos
porque o motor do gato
não é um motor elétrico.

É um motor afetivo
que bate em seu coração
por isso faz ronron
para mostrar gratidão.

No passado se dizia
que esse ronron tão doce
era causa de alergia
pra quem sofria de tosse.

Tudo bobagem, despeito,
calúnias contra o bichinho:
esse ronron em seu peito
não é doença - é carinho.

Ferreira Gullar
Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.
Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demôno, ante meus olhos.



Edgar Allan Poe
... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, espararei quanto tempo for preciso.

Clarice Lispector

domingo, 26 de junho de 2011

Nova canção do Exílio

Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim
Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos


Ferreira Gullar

Mascarados

Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.

Cora Coralina

Poesia Concreta

sábado, 25 de junho de 2011

Eu

Eu - Florbela Espanca
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca
Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes… tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer:
- E daí? Eu adoro voar!
Não me dêem fórmulas certas, por que eu não espero acertar sempre. Não me mostrem o que esperam de mim, por que vou seguir meu coração. Não me façam ser quem não sou. Não me convidem a ser igual, por que sinceramente sou diferente. Não sei amar pela metade. Não sei viver de mentira. Não sei voar de pés no chão. Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra sempre

Clarice Lispector
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,


Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.


Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,


Coração de ninguém.

Fernando Pessoa, 6-1-1923
Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.

A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme. dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.


Fernando Pessoa